POR DETRÁS DOS MONTES VII

Na última postagem, o inico da Guerra, na verdade, ao longo de todo o trabalho, mal se fala dos combates. A ideia original é tirar da frente tudo o que possa ofuscar as verdadeiras causas do Conflito, e entender como uma massa de camponeses pegua em armas por 4 anos para combater o exército brasileiro, nos leva aos momentos que antecedem ao combate. Bem, um resumo de tudo está logo abaixo, nas “conclusões”.

A DEFLAGRAÇÃO DO MOVIMENTO

Até 1910, a população de Santa Catarina chegava a 500.000 habitantes, estando 50.000 deles na região Contestada. Apenas uma pequena parte destes possuía a propriedade legal das terras. A maior parte da população vivia atrelada às fazendas, cuidando do gado; ou às margens das propriedades dos coronéis, na roça de subsistência, nas pequenas serrarias e principalmente na coleta da erva-mate.

Nos últimos anos da primeira década do Século XX, a população sofreu do Contestado sofreu um repentino crescimento de quase 20% do número de seus habitantes. A região recebe 8.000 novos moradores. Neste mesmo período, a atividade de extração da erva entra em crise, engrossando a massa dos homens marginalizados.

Toda essa gente passa a compor um grupo humano errante, desagregado, disponível para a irrupção do movimento rebelde do Contestado. A plebe rural, abandonada e desajustada no quadro institucional, refugia-se no messianismo, em protesto difuso e sem alvo.

Em fins de 1912, o país é sacudido com a notícia de que um grupo de sertanejos, armados por uma fé exaltada e desviada da ortodoxia da Igreja Católica, atacara um contingente da Força Pública paranaense.

Os rebelados eram conduzidos por um monge ignorante e desconhecido. O ataque se deu nos campos do Irani, nas proximidades do atual município de Concórdia, em Santa Catarina. Naquela ocasião, as terras estavam sob jurisdição do Estado do Paraná.

O grupo caboclo reunira-se em torno do seguidor de João Maria, José Maria. Sua presença não era bem vista pelos coronéis, e os sertanejos são expulsos para terras vizinhas.

O poder paranaense entendeu o deslocamento dos fies, tocados pelas oligarquias do lado catarinense, como uma invasão de seus domínios. Uma tropa é enviada para o ataque. As armas dos caboclos eram facões, e tiraram a vida de numerosos soldados, incluindo o comandante da tropa.

Começava oficialmente o Conflito do Contestado. A guerra duraria quatro anos, cinco expedições militares e milhares de vidas. O último reduto sertanejo a cair, no vale de Santa Maria, resistiu até o último cartucho deflagrado pelas forças republicanas.

Descalço, mal alimentado, miserável, ignorante, sem grandes conhecimentos militares e numericamente inferior, o povo rebelado lutou até o esgotamento total, numa resistência única e heroica. Para estes, o sistema vigente não tinha mais nada a oferecer a não ser a morte.

CONCLUSÕES

A questão que se esconde por de trás dos montes, no sertão de Santa Catarina é antes de mais nada uma questão agrária. O Conflito do Contestado é muito mais uma luta de classes pelo acesso à terra do que um simples surto messiânico, monarquista, herético, ou quaisquer outros eufemismos que sempre ocultaram o massacre de milhares de caboclos “fanáticos”.

Um estudo mais crítico do fenômeno passa pelas intensas transformações ocorridas no processo de desenvolvimento das forças produtivas, na segunda metade do Século XIX e no início do Século XX.

Em 1850, é proibido o tráfico negreiro no país, criando as condições para a instauração da mão-de-obra assalariada no Brasil. Com o fim do regime escravista o país está pronto para entrar definitivamente no circuito capitalista como potência agroexportadora.

Neste mesmo ano, é aprovada a Lei de Terras, que teve como principal consequência a privatização da terra, ou o que Marx chamou de acumulação primitiva. Outro pilar básico na sustentação do projeto capitalista.

Nos campos, massas de homens livres dão forma ao incipiente campesinato nacional. Sua situação é em geral de posseiro, sem escrituras sobre as terras em que vivem, trabalhando muitas vezes como agregado ou empregado temporário para grandes fazendeiros, ou “coronéis”.

As forças produtivas do Império avançam durante a República. Questão diversas, passando pela segurança nacional e pela integração regional que vêm ocorrendo, levam regiões periféricas do território nacional para um novo status.

A valorização das terras e a especulação imobiliária vão se acentuando conforme as relações mercantis se aprofundam pelos distantes campos catarinenses. O mate, que até outrora era de livre exploração do campesinato, alcança destaque na pauta comercial e passa a ser privilégio dos senhores de terras e grandes companhias exploratórias da erva.

A expansão capitalista, em sua etapa Imperialista, atinge seu ponto crítico no sertão com a chegada do grupo americano Farquhar e sua com companhia de trens. Escutemos o que diz Lênin em O Imperialismo Fase Final do Capitalismo.

“A construção de vias férreas é aparentemente uma empresa simples, natural, democrática, cultural, civilizadora … Na realidade, os laços capitalistas, que ligam por muitas redes essas empresas à propriedade privada dos meios de produção em geral, transformaram essa construção num instrumento de opressão para um bilhão de homens (nas colônias e semi-colônias), isto é, para mais da metade da população do globo nos países dependentes …”

A chegada do trem à região Contestada significou a chegada de 8.000 novos moradores, que não serão recolocados ao fim da obra. A linha férrea trouxe também a valorização das terras, com o aumento de sua renda relativa.

O Capital Monopolista avança, a madeireira Lumber arrasa toda a concorrência da pequena indústria local, juntamente com milhares de hectares de matas nativas. Os porjetos colonizadores tomam o resto de terras disponíveis.

Ao homem do campo, esquecido pelas autoridades do Estado, desamparado de direitos, sobra sucessivas expulsões. Este perda a exploração do mate, da madeira, das terras de onde retirava sustento mínimo e de onde fazia sua morada.

Neste contexto de total exclusão, é que as vozes dos monges servem de conforto para centenas de homens. O regime republicano, para os sertanejos, significou o fim de qualquer esperança de dias melhores. Foi com naturalidade que aceitaram combater em favor de uma monarquia celeste, que rejeitava a nova ordem capitalista instaurada nos planaltos.

É somente à luz destes fatos que poderemos entender os reais motivos que levaram famílias inteiras a se transformarem em perigosos bandidos, que resistiram firme, até a última alma, combatendo o grosso das tropas do exército nacional.

POR DETRÁS DOS MONTES VI

Estamos chegando ao fim do trabalho, isto é, o início do massacre. Analisamos aqui as causas da Guerra do Contestado, que pouca gente conhece, ou o que conhece não diz toda a verdade. Não, o Contestado não foi uma “Canudos do Sul”, com um monte de sertanejo ignorante seguindo um líder religioso maluco. Foi antes de tudo a necessidade do Capital em limpar a área de seus antigos moradores, para ali implemetar um projeto claro de gestão do território. Além de eliminar o povo, também acabou-se com toda a Araucária de Santa Catarina.

 

 

AS TERRAS

 

A expulsão dos posseiros iniciou-se em 1911. Um corpo de segurança foi criado para agredir os moradores que se recusavam a sair das terras cedidas à Companhia. Os grupos eram formados por duzentos homens de índole violenta. Incendiavam casas, roças, chegando a cometer verdadeiras chacinas, exterminando famílias inteiras.

Cada vez mais, crescia a massa de caboclos que já não tinham mais condições de produzir seus próprios recursos de subsistência. Estes novos excluídos viriam a se somar a ervateiros, peões, posseiros em geral, que há tempos vinham caminhando à margem do sistema econômico que se estabelecia no Contestado.

A disputa pela terra faz-se cada vez mais acirrada. Ela passa a ser cada vez mais percebida como uma fonte de renda. Logo após a inserção do capital estrangeiro na região, a terra passa da sua condição de bem de uso para a condição de mercadoria, transformando-se em bem de produção. A institucionalização da propriedade privada substitui a ordem anterior, de ocupação e posse.

 

A MADEIRA E O PROJETO COLONIZADOR

 

O projeto de exploração do meio-oeste catarinense concretiza-se com a criação da Southern Brazil Lumber Company, subsidiária da Brazil Railway, em 1909. A companhia iria extrair os vastos recursos madeireiros da região. São contruídas duas imensas serrarias, iniciando-se assim a devastação de pinheirais seculares.

A unidade maior estava localizada em Três Barras, numa área de 180.000 hectares, e logo deu origem a uma cidade. Sua produção era destinada aos portos de São Francisco e Paranaguá, através da ferrovia. Esta serraria chegou a cortar 300 m3 por dia, a maior produção em toda a América do Sul.

A outra instalação é erguida em Calmon, sede do escritório da ferrovia, numa área de 52.000 hectares, nas nascentes do Rio do Peixe, ao Sul de Porto União. Ali eram produzidos dormentes dos trilhos e madeiras para a construção das estações, casas, depósitos e armazéns da Companhia.

Contratos estabelecidos entre fazendeiros e a serraria garantiam o direito de exploração de centenas de quilômetros de florestas, muito além dos já pertencentes à empresa. O impacto desse empreendimento, que contava com reduzida mão-de-obra, agilidade nos transportes e produção em larga escala, acarretou uma crise na pequena indústria local.

O trabalho de extração, tratamento e armazenagem das toras era relativamente mecanizado, e portanto não representou um incremento na oferta de empregos para o caboclo excluído de toda sorte de ocupação.

Em 1913, a madeireira muda seu estatuto, transformando-se em Southern Brazil Lumber and Colonization Company.  Colonos alemães, italianos e poloneses que já estavam nos Estados do Rio Grande do Sul e do Paraná são atraídos pelas propostas da empresa.

A limpeza humana efetivada pelo corpo de segurança da Companhia já estava concluída. Com a expulsão de todos os posseiros do território, vários núcleos coloniais se formam ao longo das férteis terras do vale do rio do Peixe.

A atividade agrícola, que até então era representada pela cultura de subsistência, passa a produzir excedentes. Os produtos alimentares abasteceriam a região da cafeicultura paulista e o mercado internacional, através dos trens do grupo estrangeiro.

 

RUPTURA COM O CORONELISMO E COM O CATOLICISMO OFICIAL

 

A estrutura de mando do coronelismo fica abalada com o surgimento desses novos agentes econômicos na região. Os interesses do capital levam ao rompimento das associações entre o coronel e seus dominados, alterando o gênero de vida costumeiro do sertanejo.

Relações de trabalho até então desconhecidas se fazem presentes. Surgem novas modalidades de controle. As companhias estrangeiras dispunham de polícia própria, que não estavam mais atreladas aos interesses de um determinado fazendeiro. Os novos jagunços são tropas estritamente mercenárias, sem vínculos de compadrio.

A figura do monge João Maria representava a possibilidade de negação à realidade vigente, fortemente opressora. Frente à pobreza, à insegurança e à violência reinantes, ele traz a proteção das forças sagradas. Considerado um grande curandeiro, sua força milagrosa transmitia-se a tudo o que fosse por ele tocado.

João Maria, assim como os demais monges que o seguiram, simbolizava a autoridade justa, o médico, o padre, o professor, anunciando ainda a vinda de novos tempos em que a felicidade, a fartura e a justiça se fariam presentes.

Era comum a realização de dois batismos, um batismo intraclasse (onde o padrinho e o pai da criança vinham da mesma classe social), que era efetivado pelo monge ou outro religioso leigo. O segundo batismo, este interclasse (onde o padrinho era de maior estirpe que os pais, geralmente um coronel), era celebrado por padre católico.

O catolicismo rústico do Contestado desvia-se cada vez mais da ortodoxia da Igreja. Os pais passam a preferir que os filhos sejam batizados exclusivamente pelo monge e que ele mesmo fosse o padrinho. O poder representado por João Maria sobrepujava o poder dos coronéis e padres, na hora do sacramento.

O Frei Rogério Neuhaus, franciscano que mais teve contato como os paroquianos do sertão, encontrava vários meninos e meninas com até doze anos de idade que, sem batismo, esperavam a passagem do monge para celebrar o ato leigo.

A crise institucional do poder de compadrio e do poder da Igreja agrava-se na medida em que os rebeldes vão criando uma nova visão de mundo. A radicalização do movimento tomará força progressiva, até a deflagração da Guerra do Contestado.

POR DETRÁS DOS MONTES V

Finalmente chegamos no que pode ser o principal ponto da Guerra do Contestado, a chegada do Grupo Farquhar. A intervenção do capitalista norte-americano vem agravar de vez a precária situação do homem do campo, empurrando os excluídos para seu destino final. O extermínio em massa.

 

 

INCREMENTO DAS RELAÇÕES REGIONAIS

 

O Contestado era uma área isolada do restante do Estado e do Brasil, o interior comunicava-se com os centros mais populosos através de precários caminhos de tropas. A expansão da área cafeicultora gerava demanda de produtos agropastoris e contribuiu muito para que as regiões sulinas interligassem seus núcleos urbanos a rotas que levassem para os mercados de São Paulo.

Outro fator importante para o incremento das relações regionais foi a disputa de fronteiras com a Argentina (1881 – 1895). Existia a necessidade de uma ação estratégica por parte do Estado, para garantir a soberania nacional em terras em litígio com a nação vizinha.

Os extensos campos eram praticamente desabitados, ao menos por núcleos urbanos estáveis, e o poder público não detinha instituições que o representassem. Era uma terra de ninguém. Para assegurar a posse do território frente à disputa internacional, foi criado o Plano de Viação do Império, que incluía uma longa linha férrea, ligando Itararé (SP) à Boca do Monte (RS), 30 Km de Santa Maria, com 1.400 Km de extensão.

A ferrovia cortaria regiões de férteis terras devolutas, em especial no trecho ao sul do rio Iguaçu (SC) e Passo Fundo (RS). O local era abundante em ervais e em pinheiros de alta qualidade. Seu projeto data de 1889, e o prazo para a sua execução era de cinco anos.

O Decreto Imperial garantiria a concessão gratuita das terras marginais. Isto é, estava assegurada à companhia construtora o usufruto das terras por onde a linha passasse, num limite de 15 Km de extensão a partir de cada margem dos trilhos. O dinheiro foi conseguido através de investidores europeus.

Após 15 anos, a via contava com apenas 599 Km em funcionamento. Neste momento, o norte-americano Percival Farquhar assume o controle da Companhia Estrada de Ferro São Paulo – Rio Grande, fundando a Brasil Railway Company.

 

O CAPITAL INTERNACIONAL

 

O grupo Farquhar já atuava em Cuba, Guatemala, e El Salvador, nos setores de transportes (bondes e ferrovias) e energia elétrica. Seu primeiro investimento no Brasil data de 1904, por incentivo do governo republicano. Farquhar atuou em diversas partes do território nacional.

Incorporou a Rio de Janeiro Light & Power Company (RJ), foi responsável pela construção e exploração do porto de Belém (PA) e pela Estrada de Ferro Madeira – Mamoré (AM). Participou ainda das seguintes ferrovias: E.F. Paraná, E.F. Dona Teresa Cristina, E.F. Mogiana, E.F. Mogiana, E.F. Paulista e E.F. Sorocabana.

Dominou o transporte fluvial da Amazônia com a Amazon Development Co. e a Amazon Land & Colonization Co. (empresa a que pertenciam os 60.000 Km2 do atual Amapá). Controlou os portos do Rio de Janeiro (RJ), Paranaguá (PR) e Rio Grande (RS).

Sua empresa, Brazil Land, Cattle & Packing Co. somava 4.000.000 acres do Pantanal mato-grossense com 140.000 cabeças de gado, em Descalvados. Fundou ainda o primeiro frigorífico do Brasil, em Osasco (SP), construiu um hotel-cassino no Guarujá (SP) e ergueu a maior serraria da América do Sul, em Três Barras (SC).

O investidor americano tinha o ambicioso projeto de construir um sistema ferroviário unificado na América do Sul. O primeiro passo foi a abertura da Brazil Railway Company, em 1906, quando o empresário adquiriu o trecho construído da Estrada de Ferro São Paulo – Rio Grande. Ganhava, assim, o direito sobre os 6.000.000 de acres que margeavam a linha férrea. Farquhar pretendia desenvolver a agricultura comercial, tendo em vista abastecer São Paulo, e exportar a madeira, pelo porto de Paranaguá.

Em quatro anos de sua administração, a Brasil Railway concluiu o trecho inacabado da E.F. São Paulo – Rio Grande. Em 1910 a via é entregue ao tráfego. A possibilidade de confronto armado entre Brasil e Argentina levaria o governo a incentivar o aceleramento de sua construção.

A obra a ser executada rasgaria as terras Contestadas, trazendo para lá importante contingente populacional. A empresa contratou algo em torno de 8.000 homens, vindos do proletariado de Santos, do Rio de Janeiro, de Salvador e do Recife. Eram formadas equipes de trabalho, sobre responsabilidade de um taifeiro.

Estes grupos recebiam um determinado trecho a construir e o feitor se responsabilizava pelo pagamento dos empregados. A Companhia construía armazéns onde os trabalhadores adquiriam seus próprios mantimentos. Um bem armado corpo de segurança, com dezenas de homens, controlava os descontentamentos quanto aos constantes atrasos nos pagamentos e desmandos dos capatazes.

As manifestações de protestos dos operários eram reprimidas severamente pelos homens da segurança, que empregavam a violência com tranquilidade. Com o fim dos trabalhos, os operários não foram reconduzidos aos seus estados de origem. Essa massa de descontentes com a rígida exploração vieram agravar ainda mais os problemas da população local.

O número de moradores na região Contestada não parava de crescer. A terra era cada vez mais privatizada e o mate, principal fonte de riqueza, sofria uma queda de preços no mercado internacional. Sem trabalho, esses homens foram erguendo toscas residências ao longo das terras vizinhas aos trilhos da E.F. São Paulo – Rio Grande.

A Companhia, que recebera a concessão dessas terras através de Decreto do Governo Central, tinha planos concretos para a utilização da área ocupada por seus ex-funcionários. Farquhar pretendia extrair a madeira disponível e depois lotear a área para a venda a imigrantes.

Futuramente, tais lotes produziriam produtos alimentícios para abastecer as regiões produtoras de café, em São Paulo. O transporte das mercadorias seria feito através dos trens da própria Companhia, desta forma os ganhos seriam certos.

POR DETRÁS DOS MONTES IV

Continuando a publicação da tese sobre o Contestado, um pouco das relações entre coronéis e camponeses, o acesso às terras e o cultivo do mate, uma das principais ocupações da região antes da guerra.

 

 

ORDEM ECONÔMICA, POLÍTICA E SOCIAL

A vida econômica Planaltina estava baseada na criação extensiva do gado bovino, na coleta da erva-mate e na extração da madeira. Os coronéis eram senhores das terras e das gentes nelas presentes.

O primeiro desbravador da região, Corrêa Pinto, estabeleceu-se com outros fazendeiros paulistas, fundando a vila nos campos de Lages, em 1771. As amplas e boas pastagens, além da estratégica posição geográfica – entreposto do comércio de rebanhos entre São Paulo e o Rio Grande do Sul – garantiram o sucesso do empreendimento.

As grandes propriedades recebiam agregados, que viviam com toda a sua família. O trabalho consistia basicamente no trato do gado. Era comum a prática da pequena agricultura, de subsistência, em terrenos vizinhos às casas, geralmente associada à mulher. A criação de porcos e galinhas completavam a auto-suficiência das vastas fazendas serranas.

Quando muito, um agregado conseguia juntar algumas cabeças de gado e migrava para regiões distantes, onde fosse possível estabelecer-se como posseiro. A medida que o rebanho crescia, a ocupação estendia-se rumo ao Oeste. Mas, a atividade pastoril não acompanhava o crescimento demográfico da população. Logo, o cultivo do mate passaria a empregar importante contingente.

Os peões (mão-de-obra disponível para as épocas de maior demanda) e os agregados eram homens de inteira confiança do coronel, estando sempre à sua disposição, como uma espécie de força paramilitar, ou jagunços. Ao perguntar “-Quem é você?” para um caboclo, este respondia “-Sou do coronel fulano.”, enquanto por sua vez, o coronel dizia “-Essa gente é minha.”

O mate, já consumido entre os indígenas locais, era alvo de crescente procura. A produção serrana era escoada até o porto de Paranaguá (PR) e encaminhada para os mercados do Prata. Em 1873, a estrada de terra Dona Francisca pôs em contato a área do Contestado com o litoral catarinense, ligando Joenville a Mafra, Rio Negro e Porto União.

O mate passava a ser exportado pelo porto de São Francisco do Sul (SC). Uma intensa rota de carroças foi formada. Entre 1892 e 1920, o chá era o produto de maior valor comercial produzido em Santa Catarina. Em 1900, a erva representava 31% do total das vendas no Estado. Os camponeses sobreviviam da exploração da erva-mate, da pequena industria madeireira, da roça e dos alimentos encontrados na região (mel, palmito, pinhão, caça…)

A LEI DE TERRAS

As terras passam a ter um valor cada vez maior. A Lei de Terras de 1850 restringia o seu livre acesso, vinculando a posse das terras devolutas, ou livres, à compra. O Estado restringia artificialmente a abundância de terras disponíveis.

Supunha-se que a ampla faixa de terras poderia vir a ser ocupada por escravos emancipados e agregados, promovendo evasão da força de trabalho. A Lei apresentava compromisso com a política de imigração, pois não permitia a fácil aquisição de terras pelos imigrantes recém-chegados, que eram obrigados a trabalhar para terceiros nas grandes fazendas de café.

Desta forma, ficou assegurado aos latifundiários e aos demais grandes grupos econômicos e políticos, que dispunham de capitais para a compra, o título de propriedade em nosso país e a mão-de-obra para cultivá-la.

Nota-se que, em 1850, os EUA também lançavam uma Lei de Terras, o Homest Act, que distribuía gratuitamente propriedades a todos aqueles que se dispusessem a cultivá-las. A opção brasileira foi pela concentração da terra, enquanto que nos EUA, incentivava-se a pequena propriedade.

Ao caboclo catarinense restava apenas o acesso às terras mais distantes, sempre na situação de posseiros, à mercê dos interesses expansionistas dos latifundiários ou do surgimento de novos e fortes grupos interessados.

APOGEU DO MATE

A união de exportadores de mate de São Bento do Sul e Joinville, em 1890, gerou uma grandiosa Companhia Industrial. Esta instituição foi tão poderosa que conseguiu junto ao governo federal, através de decreto lei em 1891, permissão para explorar por vinte anos os terrenos devolutos em sete municípios (São Bento, Blumenau, Curitibanos, Campos Novos, Tubarão, Lages e São Joaquim), além de colocar três de seus diretores no cargo de prefeito de Joinville, até 1900. Neste referido ano, as quatro maiores empresas exportadoras de erva-mate do Paraná não somavam o capital social da empresa catarinense.

A Companhia tinha o direito de cortar a madeira para a construção de armazéns para o mate e para a construção de residências de seus empregados. A zona ervateira contava com onze armazéns. Um na matriz, em Joenville, seis em municípios de Santa Catarina (Porto União, Lucena, Oxford, Lençol, Campo Alegre e São Bento do Sul) e quatro no Paraná (Rio Negro, Antonina, Morretes e Paranaguá).

O produto era recebido praticamente in natura e depois de algum preparo era remetido para Joinville, onde se fazia o beneficiamento final. O mate era então acondicionado e enviado por navios até os principais centros consumidores: Buenos Aires, Montevidéu e Valparaíso.

Os caboclos que viviam da coleta do mate não tinham escrituras das terras, viviam em áreas devolutas, onde construíam toscas moradias. Nos postos da companhia, trocavam a erva por manufaturados de difícil acesso no interior do Estado, tais como sal, açúcar, farinha, munição, querosene e fósforos.

Durante longo tempo, foi costume a exploração do mate por parte dos agregados e peões dos latifundiários. Esta atividade, paralela às funções da fazenda, complementavam a remuneração dos empregados. Quando da valorização da erva e da procura por terras devolutas, os coronéis passaram a coibir o que chamaram de “coleta abusiva do mate” em suas propriedades.

Com isto formava-se dois circuitos na cultura do chá. O primeiro momento, acontecia com os pequenos proprietários e posseiros entregando o produto nas mercearias e comprando seus manufaturados. De lá o mate era levado aos armazéns do interior, até a matriz em Joinville.

O segundo circuito iniciava-se com os peões-erveiros, que trabalhavam para os latifundiários. Os fazendeiros compravam o produto por um preço baixo, e revendiam a carga para os armazéns da Companhia.

O mate, que era o principal produto exportado em Santa Catarina em 1900 (31% do total), sofreria uma constante queda na participação da balança comercial do Estado (1905 – 23,7%; 1910 – 16,5%, 1911 – 11,7%).

O decréscimo da atividade tinha como causas gerais o aumento do imposto sobre a exportação do mate para 33% e a formação de grandes estoques no mercado platino, que forçavam um aumento nos custos de produção e uma queda nos preços finais da mercadoria, respectivamente. No ano de 1905, a Companhia Industrial fecha as suas portas.

O desmantelamento da estrutura exploratória do mate foi trágico para os que dela sobreviviam. Seria exatamente no período da queda nas atividades (1905-1910) que a região receberia importantes contingentes populacionais, agravando mais ainda a situação econômica dos habitantes do interior do estado.

Durante os anos do conflito (1912 – 1916), a participação do produto na balança comercial decai sobremaneira (1912 – 14,4%; 1913 – 10,6%; 1914 – 12%; 1915 – 6,8%), uma vez que o palco dos embates estaria localizado exatamente sobre a área produtora; e a mão-de-obra, que antes cultivava os campos, estaria ocupada em combater as tropas federais.

Já no último ano do conflito, e nos que logo se seguem, podemos observar uma rápida recuperação do setor, mas que não atingiria os valores obtidos em 1905 e 1900. (1916 – 9,8%; 1917 – 20%; 1918 – 14%).

POR DETRÁS DOS MONTES III

O nome “Contestado” deriva do problema das fronteiras da região. Um território disputado entre Santa Catarina e Paraná. A disputa tem um lado cruel, a ausência do Estado, afinal, nenhum governante iria investir numa região onde não se sabia a quem pertenceria. Neste post, a explicação de como se deu a ocupação de Santa Catarina e toda a questão dos limites e suas consequências.

 

A QUESTÃO DOS LIMITES

 

A disputa entre Santa Catarina e Paraná teve início em 1853, quando desmembrados da Província de São Paulo, os paranaenses procuraram firmar posse sobre as terras do oeste catarinense.

Em 1854, o deputado catarinense Joaquim Augusto do Livramento propunha como fronteiras para a Província de Santa Catarina as seguintes linhas: ao Sul, divisa com o Rio Grande do Sul, o rio Mampituba, o arroio das Contas, os rios Pelotas e Uruguai; e ao Norte, a divisa com o Paraná, o rio Saí Grande, o rio Negro e seu receptor.

As fronteiras ao Sul da Província foram aceita, mas a Província do Paraná questionou as linhas do Norte. Os paranaenses afirmavam ter direitos aos Campos de Palmas, “descobertos” por fazendeiros paulistas em julho de 1854.

Em 1856, o Paraná propõe uma nova divisão, onde ganharia direitos sobre os Campos de Palmas, Lajes, Campos Novos e Curitibanos, passando pelo rio Canoas, sua confluência no rio Pelotas até o rio Marombas e sua nascente. Deste ponto, a fronteira caminharia em linha reta, até a Serra do Mar, e por esta até o paralelo da nascente do rio Saí.

A divisão política daquelas terras foram sempre conflitantes, desde as capitânias hereditárias. Nenhuma proposta foi acatada, e os paranaenses continuaram sua expansão sobre terras reclamadas pelo governo da Província Catarinense. A disputa política resultou em derrubada de pontes, envios de deslocamentos policiais e criação de estações fiscais em áreas de litígio.

Para o povo espalhado pela área Contestada pertencer a Santa Catarina ou ao Paraná nada significava. O Estado inexistia. O poder local era exercido por coronéis, super-fazendeiros que dispunham da vida e do patrimônio dos cidadãos.

Em 1864, o governo do Paraná ergue um posto fiscal em Chapecó e os catarinenses no rio Uruguai. O Paraná procurava expandir-se por todo o planalto, empurrando Santa Catarina Serra do Mar abaixo, para a região litorânea.

Os postos fiscais paranaenses foram avançando, chegando ao ponto da colônia de São Bento ser invadida por policiais do Paraná. As notas, reclamações e protestos de ambas as partes eram frequentes e ineficientes.

A partir de 1881, um terceiro elemento entrará na disputa pela região. A Argentina acreditava ter direitos sobre a área em questão. Em 1895, a disputa internacional chega ao fim, com o arbitramento do presidente dos EUA – Grover Cleveland – em favor do Brasil, estabelecendo as atuais fronteiras entre os dois países.

A situação interna continuava conflitante. É proclamada a República (1889), e a nova constituiçãoo permitia aos estados decretar impostos sobre exportações de mercadorias, indústria e profissões. Os recursos naturais do planalto, mate e madeira, eram cada vez mais explorados e os tributos tornavam-se cada atraentes.

Em 1896, o Governador do agora Estado de Santa Catarina envia tropas militares para garantir, em São Bento, a reconstrução de pontes destruídas pelo município de Rio Negro. Tropas são deslocadas por ambas partes, gerando uma disposição para o conflito armado.

Em 1904, o Supremo Tribunal Federal da ganho de causa a Santa Catarina. Paraná recorre da sentença e, em 1909, é derrotado novamente. Rui Barbosa tenta, ainda em 1910, defender a causa paranaense, mas nada consegue.

O Paraná, sempre derrotado, recusa-se a aceitar o fato, até que em 20 de outubro de 1916, os governantes de Santa Catarina, Felipe Schmidt, e do Paraná, Afonso Camargo, sob mediação do presidente da República, Wenceslau Bráz, assinam um acordo, pondo fim à disputa pelas terras e estabelecendo os atuais limites entre ambos os estados.

Esta briga entre unidades da federação ajudou no agravamento da crise no Contestado, uma vez que estimulou a formação de grupos armados a serviço das partes – Santa Catarina e Paraná – aumentando a circulação de armas na região serrana.

Outra grave consequência foi a total ausência de investimentos do Estado, tais como delegacias, hospitais, escolas, etc., numa área onde ainda não estava definida a quem pertenceria no futuro próximo. As populações do Contestado viviam à própria sorte, dependendo exclusivamente do mandonismo local dos coronéis, e depois do patronato das multinacionais.

POR DETRÁS DOS MONTES II

Este é talvez o capítulo mais denso para quem não está habituado à leitura geográfica. Explico a inclusão do Brasil na ordem mundial, mostrando como o Contestado é um bom exemplo para entendermos as transformações pelas quais o país passava. O Contestado acontece alguns anos após o fim do trabalho escravo no Brasil, e a instauração da República. O Contestado é a resposta aos novos problemas que a instauração do Capitalismo traz para o Brasil, em especial para o homem do campo. Até então, com o trabalho escravo, não podíamos pensar num pleno Capitalismo em terras brasileiras, uma vez que ele depende da mão de obra assalariada. O que virá a acontecer é consequência desta nova forma de se organizar da sociedade brasileira, agora dentro das regras do capitalismo internacional, que se expande da Europa e Estados Unidos, em busca de novos mercados.

A SITUAÇÃO BRASILEIRA

A deflagração da Guerra do Contestado ocorre juntamente com a imposição de fatores modernizantes da área, como a Estrada Ferroviária São Paulo – Rio Grande (do Sul) e a implantação de loteamentos para imigrantes, tentáculos do processo capitalista.

A área contestada sofre um profundo processo de desestruturação em consequência da chegada de poderosas forças econômicas, representadas pelas empresas do grupo Farquhar (Brazil Railway e Brazil Lumber). O avanço das relações capitalistas excluía cada vez mais milhares de caboclos.

As novas formas de produção e de relações no trabalho, com a crise no sistema de compadrio, leva os sertanejos a organizarem seu próprio território livre. Os pelados, como se chamaram os descamisados da época, rebelaram-se frente aos peludos, o exército republicano.

As mudanças nas relações de trabalho, os processos sociais desenvolvidos e a luta pela determinação dos rumos de uma porção do território nacional estarão diretamente envolvidos nas respostas para o porquê, sob o viés geográfico, da Revolta do Contestado.

O sertanejo catarinense, assim como o campesinato brasileiro, sempre foram, de certa forma, insubmissos. Suas lutas foram contra a dominação pessoal dos fazendeiros e coronéis, num primeiro momento, e depois contra a expropriação territorial grandes proprietários, grileiros, empresários e pela grande empresa capitalista.

Nesse sentido, podemos classificar a Campanha do Contestado como uma verdadeira luta de classe, no sentido explícito da palavra. Como nos diz José de Souza Martins: “É um campesinato que quer entrar na terra, que, ao ser expulso, com frequência retorna, mesmo que seja terra distante de onde saiu.”

Nesse movimento de avanço do capital sobre a terra, o camponês constitui uma classe migrante. A cada expansão do primeiro, o caboclo posseiro é deslocado para regiões mais inóspitas, compondo a frente pioneira de desbravamento do território. Tal movimentação é muito bem descrita no trabalho de Pierre Mongbein, Fazendeiros e Pioneiros, que detalha a colonização de São Paulo.

O incipiente campesinato é engrossado por levas de imigrantes europeus, italianos e alemães principalmente, que vêm substituir a mão-de-obra escrava. Estamos falando da mudança do sistema escravocrata para um verdadeiro capitalismo em terras brasileiras, com a implantação da mão-de-obra assalariada.

Esse novo sistema, o capitalismo, é precedido pela acumulação primitiva, exaustivamente detalhada no O Capital. O Contestado nada mais é que um exemplo claro, nítido, do processo analisado por Marx. A terra se transforma em importante mercadoria e a mão-de-obra segue o mesmo caminho. O fim da escravidão redefine as condições de existência do campesinato.

A substituição da força de trabalho escrava tem em 1850 o seu grande marco. Neste ano fica proibido o tráfego de negros e também é promulgada a Lei de Terras, que regulamentava a propriedade privada da terra no Brasil. Anterior a essa data, vigorava a estrutura fundiária colonial de sesmarias, onde a terra era uma concessão do Estado para o uso do território, mas a posse continuava estatal.

O número de posseiros não parava de crescer, num país com vastas regiões a serem exploradas. A Lei de Terras proibia a abertura de novos lotes ao limitar a aquisição de terras devolutas exclusivamente pela compra. O sertanejo, despojado de qualquer dinheiro, tem então o acesso negado ao seu único bem de onde tirava o seu sustento, o campo.

Com a primeira constituição republicana de 1891, as terras devolutas são transferidas para os recém-criados Estados e colocadas nas mãos das oligarquias regionais. Cada unidade da federação desenvolveu a sua política de concessão de terras, com transferências maciças de propriedades para grandes fazendeiros e grandes empresas de colonização interessadas na especulação imobiliária.

A acumulação primitiva, sob a forma de propriedades privadas no campo, e a substituição gradual da força de trabalho no país, são os pilares do projeto capitalista instaurado no Brasil. Suas consequências são as causas diretas que motivaram o início da revolta sertaneja nos campos de Santa Catarina e que descreveremos em breve.

As primeiras grandes lutas camponesas no Brasil datam justamente com o fim do Império e o início da República. O messianismo sertanejo culpará o novo regime pelas mazelas que sofrem. Acusados de monárquicos, seu extermínio não provocou grande culpa perante a opinião pública republicana. O monarquismo sertanejo nada tinha com o monarquismo da família de Bragança, era apenas a não aceitação da “República dos Coronéis”.

Não é difícil perceber que o agravamento da situação no campo, em especial durante o início da República, está vinculado às alterações de ordem social. Com o fim do trabalho escravo a propriedade da terra sofre profundas modificações. Dada abolição, o senhor de escravos se transforma em senhor de terras. A terra que até então fora preterida a favor da concentração de escravos passa a ser objeto de disputa.

Ao lermos as palavras de Marx, logo vemos que a realidade abaixo descrita, instaurada na Inglaterra, guardadas as devidas proporções, em muito lembram a realidade que encontramos no campo brasileiro às vésperas do Conflito do Contestado.

“…inauguram a nova era exercendo o roubo em grande escala … As terras foram dadas ou vendidas a preços ínfimos ou mesmo anexadas às propriedades privadas por usurpação direta. Tudo isso se fez sem a menor preocupação com a legalidade. Os bens do Estado, apropriados pela fraude … constituem a base dos grandes domínios atuais da oligarquia … Os Capitalistas burgueses favorecem a operação a fim de fazer do solo um artigo de comércio, estender o domínio da grande exploração agrícola, fazer afluir do campo um grande número de pobres proletarizados … Por outro lado, a nova aristocracia bancária, da alta finança recém-surgida e dos grandes proprietários de manufaturados … o roubo sistemático das propriedades comunais se juntou ao roubo dos domínios do Estado, fazendo crescer essas fazendas, que no Século XVIII eram chamadas “fazendas capitalistas”… e que “liberaram” a população agrícola em benefício da industrialização.”

Facilmente identificamos os processos acima descritos no caso brasileiro. Eles estão representados pela Lei de Terras, pelo Coronelismo, pela penetração do Capital e de suas forças modernizantes (o Grupo Farquhar) em áreas isoladas do país.

As forças produtivas atingem uma maturidade na Europa e o Capital é lançado para uma nova etapa: O  Imperialismo. Seus tentáculos passam a operar em novos mercados, impondo o que seria a matriz de todo o processo de Globalização que vemos ocorrer hoje.

Durante a Primeira República, avançam os processos de acumulação primitiva e que significa a ampliação da posse e propriedade da terra mas também o controle das nascentes trocas. A passagem para o trabalho assalariado determinou a introdução de um modo de produção de mercadorias (a troca capitalista), uma vez que a produção de subsistência dos escravos não fundava nenhuma troca.

A agricultura brasileira sofria de baixa monetarização, então as mercadorias assumem o papel do dinheiro. A mercadoria-padrão era em geral sal, querosene, vestuário e calçados. Esses artigos tomam o lugar da moeda nas novas relações de troca no conhecido esquema de “barracões”, prática corriqueira tanto ao Sul, incluindo a região Contestada, como ao Norte do país, na região canavieira.

As mudanças do sistema escravista para um sistema capitalista de mercado, apoiado na circulação de mercadorias e no trabalho livre, acarretam na criação do campesinato brasileiro propriamente dito. O antigo baronato da monarquia forma a burguesia agrária.

O Contestado é um fiel retrato de todos os processos que ocorria no Brasil, desde o fim da escravidão e da Monarquia até a implementação do trabalho livre, da República e a chegada do Capitalismo, em sua nova fase Imperialista. No movimento sertanejo encontramos todas as convulsões por que o país passava, decorrentes das mudanças radicais que o novo sistema a ser implantado produzia.

A sustentação da República se dava através de trocas de favores políticos. Governadores apoiavam o Presidente, tendo por trás deles o aval dos chefes políticos do interior, os coronéis. Desta forma, o poder antes centralizados no monarca é distribuído pelas oligarquias estaduais, na figura de seus grandes latifundiários.

Esse sistema de trocas envolvia a nomeação de funcionários municipais por indicação dos coronéis, incluindo autoridades policiais e judiciais. Cada chefe político afinado com o governo estadual tinha o domínio sobre concessões de terras e favores na realização de obras públicas.

Quando as terras devolutas passam para o domínio dos estados, a especulação imobiliária toma corpo em todo o país, incluindo áreas periféricas da antiga economia colonial. O próprio Contestado é um exemplo deste fenômeno, terras do distante sertão de Santa Catarina onde o conflito tomará dimensões de guerra civil.

POR DETRÁS DOS MONTES I

Aproveito o clima de centenário, e o delicioso encarte especial publicado pelo Jornal O Estado de São Paulo sobre a Revolta do Contestado (http://topicos.estadao.com.br/contestado) para apresentar a minha tese acadêmica sobre a maior revolta civil do Século XX no Brasil, e que misteriosamente quase ninguém ouviu falar. O mais interessante do meu trabalho é que ele foi orientado sobre o prisma da Geografia. O trabalho do Estadão é um jornalismo que não resgata o conflito no que ele realmente foi, até porque não é essa a sua função. A Geografia estuda a distribuição das coisas sobre o planeta Terra. E entender a Revolta do Contestado passa por entender como as coisas se distribuíram em Santa Catarina. A História, dirá que a Revolta aconteceu assim, iniciando-se e desenvolvendo-se em uma sucessão de fatos. A Antropologia tentará entender a organização cabocla, como a irmandade se reuniu, os simbolismos em suas práticas. Mas é pela Geografia que está a resposta para a essência do movimento. É, antes de tudo, a luta pela posse da terra a maior questão envolvida. Analisar como se dá o avanço sobre as ricas terras do interior de Santa Catarina é a melhor maneira de entender como milhares de brasileiros desafiaram o exército nacional, resistindo por 4 anos. Mas como falar em questão agrária neste país de latifúndios é um tabu, o pouco do que se diz do Contestado é disfarçado por sua característica de fundo religioso, são fanáticos, uma nova Canudos do Sul contra a República, enfim, quando alguma informação chega à público, o foco é desviado da verdadeira questão central. Em boa hora, resgato esse trabalho de 1999, que lança uma nova luz sobre os sangrentos eventos de Santa Catarina.

POR DETRÁS DOS MONTES

A REVOLTA SERTANEJA NO CONTESTADO

(1912–1916)

INTRODUÇÃO

Foi durante o que conhecemos por República Velha, entre os anos de 1912 e 1916, que estourou no planalto catarinense um dos mais sangrentos episódios do Século XX, em terras brasileiras. Quase a totalidade do exército nacional da época foi mobilizado para reprimir a organização própria que os moradores do interior de Santa Catarina, liderados por monges messiânicos, instauraram nos campos altos.

O número de civis envolvidos chegou aos 20.000 (Canudos contou com 8.000 vítimas). Ali foram realizados os primeiros bombardeios aéreos das forças armadas brasileiras, contra o povo que deveriam defender. Uma “bela glória” para nossa tão “imaculada” armada, que já exterminara quase toda a população masculina do Paraguai. E que já estava se habituando ao massacre, como nos relata Euclides da Cunha, em Os Sertões.

Por muitas vezes, o fenômeno é dado como um surto messiânico, um bando de fanáticos a perturbar a “Ordem e Progresso”, lema da bandeira republicana. Uma interpretação minimalista é atribuir ao movimento a defesa da Monarquia, contra a recém-instaurada República de 1889, uma vez que o beato João Maria, líder espiritual dos caboclos, baseava seu discurso no livro de Carlos Magno e os Doze Pares de França, símbolo do monarquismo absolutista da Idade Média.

O pouco que se fala sobre o assunto em muito chega a ser uma errônea comparação à revolta de Antônio Conselheiro, classificando a rebelião do Contestado como a “Canudos do Sul”.

Mas, através de uma análise geográfica dos fatos, procuraremos entender o processo que levou famílias inteiras a se transformarem em perigosos bandidos, que durante quatro longos anos resistiram às forças nacionais e aos interesses internacionais, pondo em risco a posse e o usufruto de vasto território catarinense.

O movimento foi antes de tudo um processo de luta contra a ordem capitalista vigente, que os marginalizava, que os excluía cada vez mais do processo produtivo, do processo da própria sobrevivência.

Os caboclos do Oeste de Santa Catarina viviam isolados do restante do país. Eram na sua grande parte analfabetos, dentro de uma estrutura coronelística, num mandacionismo local. Sobreviviam do campo, e nele fundaram sua irmandade através das Cidades Santas.

O povo, sempre deixado de lado pelos poderes públicos e locais, viu nos discursos dos monges a promessa de dias melhores. Rapidamente, os que nada tinham eram alguém. Faziam parte de uma sociedade que gerenciava o seu próprio território em benefício de si.

As transformações por que passava o país, no plano político e administrativo, com a instauração da República, trazia consigo alterações fundamentais no mandonismo.

Institucionaliza-se a propriedade privada da terra, surgem novas formas de produção e de relações de trabalho. O sistema de compadrio se rompe, e se distancia o relacionamento entre frades e monges.

As causas originais do conflito incluem uma variedade de condições objetivas e subjetivas e não podem ser entendidas apenas como de natureza eminentemente religiosa. Os caboclos, ao negarem a ordem capitalista em constituição, responderam com uma organização crescente, até encontrarem o limite imposto pelas tropas federais do General Setembrino.

Derval Peixoto, militar presente nos combates, através da observação direta da realidade, analisou a situação sob o seguinte foco, “… a região contestada esteve sempre entregue ao despotismo dos chefes locais, ao desvario de uma sorte inumerável de crimes mal apurados e ao desmando de caudilhos temíveis…”, acrescentando ainda “… esses têm sido os propulsores morais das causas que levaram à rebeldia, como recurso de defesa, os sertanejos ignorantes e espoliados pelos prepotentes.”

Pois é este novo sentido para a Revolta do Contestado que estaremos a procurar. Um sentido enraizado na terra, ou na posse desta, o principal produto colocado em cheque pelo conflito.