Réquiem de um samba
O homem está em seu último dia de vida, o fim se aproxima, o destino em suas mãos, olhar fixo no infinito. Desce do coletivo, ganha o calçadão. Um policial interpela dois negros embriagados.
– Que é isso, autoridade?! O senhor vai prender nóis pelo crime de se divertir pacificamente?
– É chegada a hora da nossa gente bronzeada mostrar o seu valor, seu doutor!
A discussão racial neste momento não o emociona. Está anestesiado demais para isso, certo de que porá fim à sua agonia, ainda naquela tarde. Não há por que lutar.
Dirige-se ao canto da praia, ali há um parque de diversões. Última tentativa, ainda que inconsciente, de reverter a decisão? Pouco provável. Já tentou a morte por outras vezes, está convicto. Conhece o momento.
Desta vez não haverá falhas. Na infância, trabalhou em farmácia, depois, a vivência odontológica, conhece os procedimentos. Ele próprio preparou o veneno que dará cabo da sua existência.
O pó da morte vem em um envelope de papel cuidadosamente acertado entre os cartões de visitas que traz na carteira. Falta-lhe apenas a via aquosa para dissolução e ingestão do princípio sufocante.
Ao aproximar-se do parque, um petardo é disparado em sua direção. A bola rebate a poucos passos de distância, espirrando-lhe areia nos olhos. Logo, surge um menino correndo.
– Ei, moço…
– Tio…
– Joga a bola pra cá.
O dono da bola, um gordinho mimado, corre mais atrás.
– Não deixa cair na rua…
– Eu ganhei no Natal…
– Meu pai falou que é igual à que vão usar na Copa…
– Se furar, ele me mata…
A bola respinga mais umas três vezes, passando da areia para a calçada. Rola lisa para o asfalto, exatamente quando passa um caminhão. O choro do menino não o comove. Sua infância, um miserê danado. De tão pobre, foi roubado por um benfeitor que o entregou a uma família rica.
– Como pode um menino perspicaz viver em ambiente tão pobre? – foram as palavras que ouviu do agenciador de menores.
A última vez que esteve com os pais e irmãos tinha seis e, desde então, sentiu-se muito só. Na nova casa servia de doméstico, até ser abandonado pela família de criação. E aquele gordinho choramingando a bola furada.
– Deste chorão o Noel não se esquece.
– Pois para mim, com certeza já morreu.
– Eu, que só pedia felicidade…
E com água nos olhos, relembra-se da filha, de quem foi separado meses após o nascimento. O adeus antes da primeira tentativa de suicídio, ao jogar-se do Corcovado. A sina da infelicidade também a perseguiria? Nem o amor paterno o destitui de sua missão.
Viver tornou-se insuportável. A vida atribulada o massacra. Na infância não era ninguém. Fugiu com o circo, desafiou o destino. Ofereceu-se uma outra vida, foi ser artista! Do circo passou a fazer dentaduras e a estudar pintura.
A consagração veio logo, suas dentaduras só faltavam falar. Seus traçados também sustentavam uns troquinhos, e estava morando no Rio de Janeiro, longe dos fantasmas do Norte.
Mas descobriu o samba e, com ele, aqueles amigos que já nem mais sabiam de sua existência.
– Maldito Orlando, maldita Aracy.
– Carmem, a maior de todas.
– Galhardo, também.
– Se vestiram de ouro e pedrarias, esquecendo-se de que o samba não precisa da proteção de ninguém.
– É cidadão brasileiro, livre e maior de idade.
Quantas estrelas dos áureos tempos do rádio não o procuraram? Uma carreira de bocas abertas esperando, e ele compondo versos para glória de terceiros, nas bancadas do consultório dentário.
Inventou a batucada para deixar de padecer, mas quanto amargor não guardou dos que estavam ricos às custas de sua sensibilidade? E ele esquecido, só. Sempre a solidão a acompanhá-lo a vida toda, como uma sombra à base de seus pés.
Pagava os drinques dos rapazes na boemia, estava sempre rodeado. Era um mão-aberta, tentando comprar o antídoto para a carência que o corroía por dentro. Mas, por mais que tivesse amigos, estava sempre só.
Quando deixou de ser sucesso, ninguém mais o gravou, então nada mais fez sentido. No parque de diversões pediu um copo de refresco.
– Guaraná, o mais nacional deles.
No patriótico líquido, dissolveu a mistura fatal. Afastou-se de todos e, sentado em um banco, na tranquila praia de Russell, assistiu ao entardecer.
Alguém que passava por perto ainda pôde ouvi-lo declamar.
– Felicidade afogada morreu…
– A esperança foi fundo e voltou…
– Foi ao fundo e voltou…
– Foi ao fundo e ficou… … …
Assis Valente fez sua última bobagem, não chegou a ver Pelé levar o Brasil ao seu primeiro campeonato mundial, era março de 1958.