Um bonde chamado desejo
-É mano, não tem jeito, nem de sapato novo você terá cartaz com as meninas.
-Claro, ir ao baile com irmã é a morte. Quem iria se aproximar de um homem acompanhado?
-Você é muito tímido, maninho. Eu mesma vi umas três arrastando asa, e você? Nada!
-Vamos fazer silêncio, ou querem acordar os pequenos? – repreendeu a mãe, pondo fim a conversa.
Na manhã seguinte, o rapazola vestiu os novos sapatos. Não fizeram grande sucesso no baile. Mas no trabalho, uma loja de artigos finos no centro da capital, teriam a merecida consagração.
Ainda cantarolava uma canção, quando deu um salto para apanhar o bonde em movimento. O dia chuvoso, o solado novo, o calculo distraído, e de repente o pânico.
O pé de apoio deslizou pelo estribo molhado, sua voz desapareceu atônica. Na lembrança, a imagem do amigo Manduca, morto atropelado anos atrás.
Num golpe de agilidade, pôde salvar a perna. Mas a roda topou-lhe a ponta do pé. Uma dor lancinante subiu ao cérebro. Gritos, desespero, confusão instalada.
-Meu Deus!
-Corre com ele para o hospital!
-Cruzes!
Os médicos, ao verem os dedos pretos, não tiveram dúvidas.
-Vamos cortar, antes que a gangrena tome a perna.
-Enfermeira, prepare a anestesia.
…
-Como ele canta bem.
-Parece um rouxinol, trepado nessa árvore.
-Pena que é tão mirradinho, coitadinho. – cochichavam as vizinhas, observando o menino que se divertia imitando os sucessos das rádios, tendo por microfone os galhos da amoreira.
…
-Vem cá Pixinguim, hojé é aniversário do moleque, vem dar uma palhinha.
-Quantos anos, dona Balbina?
-Tá completando três.
-Então eu vou fazer uma coisinha nova que preparei, a senhora vai gostar, chama-se “Rosa”.
…
-Você canta bonito, heim! Se estivésemos na Itália, eu levaria você para estudar música. Tenho um irmão que é professor no Scala.
…
A infância vinha em flashes, em meio aos delírios de dor e morfina. Foram quatro meses de agonia em leito de hospital. A dúvida pairava no ar. Dona Balbina, muito religiosa, orava todos os dias para que seu filho voltasse a andar.
O tratamento prosseguiu em casa, durante mais um ano. De cama, ensaiando os primeiros passos, o tempo sobrava. Neste retiro forçado aperfeiçou-se, adquirindo novas músicas para o repertório, pé de ouvido no rádio.
Chegavam às mãos algumas revistas com letras e partituras do cancioneiro popular. Eram serestas e modinhas lentamente aprendidas, pois escola não tivera tempo de frequentar.
Os versos parnasianos confundiam a cabeça, mas não seriam impecílios que detivessem sua vontade de cantar. E foi o que ele mais fez nestes tempos de recuperação.
-Onde você aprendeu a cantar assim? – perguntou Conceição, o motorista.
-Canto desde pequeno, é por gosto mesmo. – respondeu o trocador.
E foi assim, em seu novo emprego de cobrador de passagens, incentivado pelos passageiros e colegas da empresa, que passou a tentar os concursos de talentos nas rádios.
-Você canta aqui?
-Até agora só cantei em casa e no ônibus onde trabalho.
Num lance de sorte, foi descoberto em meio aos demais, ainda nos corredores, à espera de uma oportunidade. Entusiasmado com o achado, o compositor Bororó não teve dúvidas, arrastou o garoto pelas ruas, até encontrar com Francisco Alves, o maioral do momento.
-Menino, você canta mesmo? – perguntou o astro.
-Canto. Mas diante do senhor, como é que eu vou dizer que canto?
A insistência de Bororó foi tamanha que, mesmo sem acreditar no molecote de 18 anos plantado em sua frente, aceitou ouvir o candidato.
O trio dirigiu-se ao Pontiac, estacionado próximo.
-Vamos ver se você pode me ajudar a bater o Sílvio Caldas, o que você conhece do repertório dele? – desafiou “O Rei da Voz”.
O garoto soltou duas composições e Chico Viola interrompeu a audição.
-O menino tem talento, vou buscar o instrumento no porta-malas.
Com acompanhamento, executaram quase duas dezenas de músicas.
-É impossível haver cantor melhor. – profetizou.
E, dirigindo-se ao calouro, recomendou.
-Vá para casa, rapaz. Não faça farra para não ficar rouco e venha cantar, domingo, no meu programa.
O jovem Orlando Silva estreou em rádio dias depois, era 1934. Em 1936, foi contratado pela Rádio Nacional que atingia todo o país. Rapidamente, com o apoio de poderoso meio, transformou-se no primeiro ídolo de massas do Brasil.
Em 44 anos de carreira, o “Cantor das Multidões” gravaria mais de 1.400 músicas, em quase 500 discos, superando Sílvio Caldas, Francisco Alves e qualquer outro que se aventurasse pelos microfones.