O Gamão no Banco do Réu

 

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Anúncio Publicitário (1980)

            Atlantic City, 1981. O casino Ceasar Regency Boardwalk agenda para março a realização de um campeonato de gamão. O Supremo Tribunal dos EUA é chamado a julgar a legalidade do torneio, em New Jersey.

A acusação argumentava que o jogo de gamão confia “materialmente” no acaso e é, portanto, em violação da lei estadual que proíbe “loterias”. Mas, ao contrário de roleta, blackjack, caça-níqueis, baccarat… gamão não estava regulamentado pela Comissão de Jogos de Estado.

A legalidade de gamão já havia sido confirmada no Estado de Oregon no julgamento de promotor torneio Ted Barr. Barr – ele próprio um advogado – e o procurador Marshall Amiton convenceram com sucesso um juiz estadual que o jogo de gamão depende principalmente da habilidade.

O caso Barr foi considerado como um sinal de vitória para os promotores de gamão em todos os lugares, estabelecendo um precedente nacional para outros tribunais a seguir. Ou assim se pensava.

A primeira testemunha a depor foi Henry Wattson, importante promotor de campeonatos. Ele explicou longamente o formato de torneios de gamão da “American Championships”, e descreveu a popularidade de gamão na América.

 

-Os jogadores de torneios são mais hábeis em geral do que os jogadores casuais. As diferenças na capacidade baseiam-se na aptidão natural e sobre a frequência que uma pessoa joga. Um torneio é projetado para maximizar a importância da habilidade dos jogadores e minimizar o fator sorte.

 

Paul Magriel, um dos melhores jogadores de gamão no mundo, serviu como testemunha especializada. As credenciais de Magriel eram extraordinárias. Havia estudado em Exeter; depois, no Instituto Courant de Matemática (Universidade de Nova York); e, em seguida, fez pós-graduação em Teoria da Probabilidade de Princeton. Foi professor de matemática por sete anos no Instituto New Jersey de Technology onde desenvolveu o programa de pós-graduação em Probabilidade.

Um jogador de xadrez pontuado no ranking nacional, Magriel aprendeu gamão na década de 1960; e, logo, tornou-se um especialista. Desde então, participou de centenas de torneios; e serviu por dois anos como colunista de gamão, no New York Times. Em 1976, Paul Magriel publicou o seu próprio livro sobre o jogo.

 

Sr. Magriel, o que determina quem ganha um jogo de gamão?

-Olhe isto deste modo, em média há vinte movimentos possíveis após cada lançamento dos dados. A escolha é do jogador, é ele quem deve exercer a sua escolha para cada movimento, é o que faz gamão um jogo de habilidade.

-Quantos movimentos possíveis existem numa partida completa?

-Mais de 10.000. Um único movimento errado, muitas vezes, determina o resultado de um jogo. E se você escolheu uma das vinte possíveis escolhas ao acaso, seria impossível para você ganhar.

-Como é que gamão se compara ao xadrez?

 

Pensativo por um momento, Magriel respondeu com entusiasmo.

 

-Gamão classifica-se junto ao xadrez em sutileza, complexidade e sofisticação. É por isso que eu desisti de uma carreira acadêmica promissora e passei dez anos da minha vida estudando o jogo. É muito mais complexo do que o pôker… blackjack é trivial em comparação com gamão. Há problemas estruturais profundos no gamão. Acredito que o elemento do acaso não é material. “.

-É um jogo sob o controle ou influência dos jogadores?

-Sim.

 

Após o almoço, Procurador-Geral Adjunto Carol M. Henderson, construiu um argumento que, finalmente, conquistou o caso para o Estado: Gamão é um jogo que usa dados. Dados são instrumentos de azar. Portanto, gamão é um jogo de azar.

 

-Xadrez, não usa dados e não envolve nenhum elemento de sorte, nã é?

-Dados não têm efeito sobre o resultado de um jogo de gamão! O que o leigo chama de habilidade e sorte são conceitos realmente obscuros!

-Quando duas pessoas de igual capacidade se enfrentam, não os dados que vão determinar quem vai ganhar?

-Não há duas pessoas de igual capacidade. É algo que nunca acontece. Os jogadores da chamada capacidade igual realmente tem pontos fortes e fracos em diferentes áreas do jogo. No gamão os dados são o fundo em que você empregar estratégia.

 

05 Dunhill Internacional Backgammon Tournament (1974)

Dunhill Internacional Backgammon Tournament (1974)

A acusação apresenta uma cópia da “Sports Illustrated”, revista com um artigo de gamão relatando um torneio onde Magriel tinha chegado à final. De acordo o artigo, todo o torneio seria decidido na próxima rodada. Um 6-1, e Magriel perderia.

 

 

-É verdade que o resultado do torneio aqui descrito foi determinada por esse único lançamento dos dados?

-Não é tão simples assim.

-Basta responder a pergunta: É verdade ou não é verdade?

-Sim, mas havia muito mais fatores.

-Então a resposta é sim?

-Sim, mas…

-Obrigado, Sr. Magriel.

 

O juiz pede tempo para rever as provas e, em uma semana, uma decisão por escrito seria emitida. Não houve o campeonato naquele março.

GAMÃO – O REI DOS JOGOS, E O JOGO DOS REIS

O texto apresentado hoje é algo diferente, desta vez é um fragmento de um material didático que escrevi. Este é um trecho da apostila para o Workshop de Introdução ao Gamão, desenvolvido por mim para a BIBLISPA – Biblioteca/Centro de Pesquisa América do Sul – Paí­ses Árabes, uma ONG que promove estudos de temas árabes, africanos e sul-americanos, nas mais diversas formas.

Aqui, trataremos apenas das questões históricas do jogo de gamão, suas origens que remontam também às origens da civilização humana. Foi o homem dominar a agricultura e desenvolver uma vida sedentária em cidades para o jogo de tabuleiro aparecer e matar as horas vagas proporcionadas pelo novo estilo de vida.

Se, depois da leitura, você ficar curioso em querer ouvir mais sobre gamão, entender suas regras e experimentar jogar uma partida em legítimo tabuleiro árabe, fique atento. ( http://www.bibliaspa.com.br ) A BIBLIASPA promove encontros cíclicos onde eu apresento não só os temas históricos a seguir, como também ensino os fundamentos básicos do jogo, suas regras, estratégias e etiquetas necessárias para que cada um já saia de lá dominando o jogo, em apenas uma tarde.

Gamão – O Rei dos Jogos, e o Jogo dos Reis

O conceito do jogo de gamão está entre os primeiros jogos que existiram, que são os jogos de percurso, onde o objetivo é fazer com que todas as peças atravessem o tabuleiro. Suas variações nos divertem há mais de 5 mil anos. O jogo foi praticado nos palácios e cortes dos mais variados povos, em diversas civilizações, caindo na graça de reis e imperadores, praticado por exércitos e plebeus.

O gamão é um jogo de dados, uma invenção praticada por tribos primitivas na Ásia. Os primeiros dados foram feitos com ossos de animais e utilizados para prever o futuro. Podiam ter 4, 8, 12 ou 20 faces. Posteriormente, o cubo de 6 faces acabou adotado como padrão universal por sua facilidade em fabricação e por seu volume geométrico que facilita o lançamento e a rolagem.

Ancestrais do Gamão

Com os dados inventados, não demoraram a aparecer os jogos de percurso. Os tabuleiros mais antigos já encontrados estavam em Ur, cidade Suméria da Mesopotâmia, fundada no século XXVIII a.C., uma das primeiras urbanizações da humanidade, no atual Iraque. Os tabuleiros foram encontrados nos túmulos da nobreza, que praticava o Jogo Real de Ur.

Jogo Real de Ur (2600 a.C.)

Seu tabuleiro tem 20 casas e é jogado com 14 peças, 7 para cada lado. As peças movimentam-se utilizando três dados em forma de pirâmides. Representava o voo de aves por desertos perigosos, com oásis seguros para o pouso.

Nefertari (séc. XIII a.C.)

O mais antigo hieróglifo representando um tabuleiro de Senet, data do século XXX a.C, no Egito Antigo. O jogo era popular em todas as camadas, e simbolizava a jornada da alma para alcançar a imortalidade, na vida além-túmulo. Caiu em desuso por volta do século III d.C.

Senet de Tutankhamon (1334-1325 a.C.)

O tabuleiro de senet tem 3 colunas de 10 casas. As peças variavam entre 5 a 10 para cada participante, que lançavam varetas para determinar sua movimentação.

Krishna and Radha playing pachisi

O livro sagrado indiano RigVedas (1700 a.C.) relata o jogo do pachisi, então o jogo deve ter chegado à Índia anterior à 2000 a.C.; uma de suas formas conhecidas no Brasil é o jogo de ludo, e o objetivo é contornar o circuito do tabuleiro em primeiro lugar.

Ânfora etrusca (530 a.C.)

O filósofo Platão (428-348 a.C.) fez referências ao jogo de kubéia, na Grécia Antiga, que teria vindo do Egito. Provavelmente, o jogo que chegou até os romanos.

Tabuleiro de ludus duodecim scriptorum (séc. II a.C.)

Na época romana, o ludus duodecim -> scriptorum era jogado num tabuleiro de 3 fileiras, com doze casas cada. Foi praticado por Calígula, Nero e os primeiros cristãos seguidores do apóstolo Pedro. O jogo cai em desuso a partir do século I, substituído pela tábula. E esta perderá espaço durante a Idade Média, por não ser atividade de agrado das ideias da Igreja.

O gamão moderno

Maomé unifica os povos árabes em 630. Com a expansão do império, os árabes conquistam a Pérsia e adotam o jogo de nard.

Não se sabe ao certo sua origem, os persas podem ter aprendido o jogo com os indianos ou os chineses, mas é deste ramo de jogo persa que chegamos ao gamão moderno praticado nos dias de hoje, com o atual número de casas e pedras.

Buzurgmihr demonstra o nard para um Raja indiano (1300-1330)

Há uma lenda indiana que conta que o gamão foi inventado por um sábio chamado Caflan, e que seguia a seguinte simbologia: as 24 casas representam as 24 horas do dia. Cada lado do tabuleiro, com 12 casas, representa os 12 meses do ano, ou os 12 signos do Zodíaco. As 30 peças são os 30 dias do mês. Os 2 dados, o dia e a noite. E a soma das faces opostas do dado são os 7 dias da semana.

Giulio Rosati (1917)

São os árabes que introduzem o nard na Europa. A expansão do Império Árabe chega ao seu apogeu em 732. com a conquista da Península Ibérica, de onde só serão expulsos em 1492, deixando o gosto pelo jogo.

Libro de los Juegos 3 (1283)

Outra forma de ampliação do gamão pela Europa foi durante as Cruzadas (1096-1272), quando os europeus conhecem o nard na Palestina e importam o costume. O jogo torna-se popular nas cortes europeias, competindo com o xadrez.

codex manesse 1305-1340

Na Inglaterra ganha o nome de backgammon, na Escócia de gammon, na França de trictrac, na Alemanha de puff, na Espanha de tablas reales e na Itália de tavole reale.

The Luttrell Psalter (1325-1335)

O nome backgammon pode significar “pequena batalha” (back cammaun), mas também pode ser o “jogo da volta” (back game). Também pode ser o “jogo do outro lado” pois, em muitos tabuleiros, um lado jogava-se o xadrez e virando o verso estavam as marcações para jogar o gamão.

Williem Duyster (1625-1630)

O primeiro registro do nome backgammon foi em 1645, em A History of Board-Games other than Chess, de H.J.R. Murray.

adriaen van ostade 1672

As regras do gamão são normalizadas pela primera vez em 1743, quando Edmund Hoyle escreve “Pequeno Tratado sobre o Jogo de Gamão”.

Pequeno Tratado sobre o Jogo de Gamão, Edmund Hoyle (1743)

O dado de dobra no valor das partidas é uma recente incorporação nas regras do gamão. Aparece pela primeira vez nos clubes de Nova York, no final da década de 1920.

giancarlo impiglia 1988

Em 1964, o príncipe russo Alexis Obolensky organiza o primeiro campeonato mundial de gamão, nas Bahamas. Alexis foi considerado o “pai do gamão moderno” por seus esforços em divulgar o jogo.

Alexis Obolensky

O Windows adotou o gamão na instalação do sistema operacional, ajudando a difundir o jogo em milhares de lares. A partir da versão Windows 2000 o jogo foi disponibilizado também para disputa online.

gamão da microsoft

O Gamão no Brasil

O gamão chega ao Brasil importado de Portugal junto com os primeiros navegadores, uma vez que o jogo era praticado nas longas viagens transoceânicas. Há notas no Tribunal do Santo Ofício da Bahia e de Pernambuco relatando a ocorrência de blasfêmias, proferidas durante a disputa partidas de gamão, já no século XVI.

Urs Graf (1511)

Durante a Inconfidência Mineira (1789), um dos apoiadores do movimento de Tiradentes teve seus bens apreendidos, entre eles um tabuleiro de gamão que os inconfidentes utilizavam durante seus encontros.

jan stolker

Na corte brasileira, a Imperatriz Leopoldina jogava gamão enquanto D. Pedro I divertia-se com sua amante, a Marquesa de Santos.

Com o início da imigração dos países árabes para o Brasil, no final do século XIX, novos praticantes são introduzidos no país, fortalecendo o hábito do gamão.